terça-feira, 27 de novembro de 2012

SACO DE OSSOS


                Tráfego tardio de experiências; neurônios cansados de levar e trazer informações, emoções, sensações imediatas. Corpo perdido numa velha cama, pedindo coberta, cuidado, respeito. Os olhos, ainda vivazes, seguem a acompanhante de um lado a outro. Tem sede; tenta falar, mas as palavras simplesmente não saem; um grunhido, balbucios, e nem assim consegue chamar a atenção da mulher que deveria cuidar dela.
         Paralisada, não consegue tirar de seu corpo nenhum movimento; desespero. As escaras lhe doem, mas não tem como falar; a comida já lhe chega por um tubo no estômago, a boca ressecada pede um algodão úmido. Mas a indiferença grassa junto a ela. Paga maldita, após deixar o que tinha para os filhos. Um quarto mal ventilado e mal cheiroso, rescendendo aos seus próprios dejetos, que não consegue mais segurar dentro de si.
          Sua mente vaga por um outro tempo, outro lugar. A acompanhante recorda-se de sua função, deixa a revista de fofocas de lado, e a vira para trocar sua fralda, falando impropérios, convicta que ela nada compreende. Sua vingança é expulsar o último resto de seus dejetos na mão daquela mulher grosseira. Agora sente-se bem de não conseguir rir. Vingar-se da imbecil, sem que ela se dê conta. Pode xingar, meu bem. Há alguma coisa que ainda posso controlar.
         Durante a manipulação sem cuidados de seu corpo, ela foge para suas lembranças. Criança, ainda, sua mãe lhe dando banho e esfregando suas costas, lavando seus cabelos com chá de camomila, para que clareassem... agora não precisa mais, mãe, meus cabelos já estão brancos... suas lembranças saltam, para seu primeiro namorado, que tornou-se noivo, e depois esposo; conveniência da família. Insosso, sempre chegando em horários escusos, com cheiro de outras mulheres. Os filhos chegando, até que ele não a procurou mais. Mais um salto, e outros braços a envolviam, único tempo de paz, nos braços do amante. Escândalo particular, o marido puxando aqueles cabelos que sua mãe lavara, arrancando um chumaço, lhe enfiando a mão na cara. Vergonha, vergonha, vergonha.
         Só ela soube. Mais ninguém. Os filhos desconfiavam, o último era mesmo um pouco diferente dos demais, mas como provar? Ninguém nunca tocou no assunto. O marido morreu. Ela velhíssima, os filhos já afastados, ela sozinha, um derrame após a discussão sobre a herança. O derrame lhe levou tudo: movimentos, boa vida, a fala, mas a deixara enclausurada neste corpo, sendo cuidada como se não fosse mais do que um saco de ossos. Pele e osso, era bem o que sobrara dela. Os filhos não a visitavam com frequência. Será que sabiam de seu passado? Ela se agita, a acompanhante lhe dá um sedativo, olha a fralda, esquece novamente de lhe molhar a boca. Que sede...
         É virada para a parede; vê a tela branca da parede, e recorda-se dos filhos, amamentando o primeiro, protegendo o último, filho de seu amor. Nem este vinha lhe ver. Antes não tivesse parido nenhum desses ingratos... ah! Mas havia a memória de suas tardes perdidas com seu amante. Vingança e prazer amalgamados num só momento. Nunca soube se realmente o amara, ou se o prazer de saber-se vingada era o ponto alto de todo aquele jogo. Nunca soube. Teria amado alguém? Os filhos, talvez? Não, amava a si mesma, e só assim se salvara daquela vida. Não suportava os netos, crianças arrogantes, tanto quanto os filhos o eram. Gostava de alguém? Novamente se pergunta. Não sei!, a si mesma responde.
         A noite cai, a tela torna-se escura. Suas pálpebras fecham, o sedativo fez efeito. Na cadeira ao lado da cama, a acompanhante ressona, sem perceber que somente um saco de ossos é o que sobrou da mulher que cuidava.

sábado, 24 de novembro de 2012

Eliane Ratier comenta sobre O Poente, o Poético e o Perdido

Fiquei muito feliz com o comentário sobre meu livro, vindo de outra poeta de mão cheia, Eliane Ratier, em seu blog:

Livros- O Poente, o Poético e o Perdido- Ana Cláudia Marques
Posted: 19 Nov 2012 11:35 AM PST
A Ana é uma das boas surpresas que este meio literário nos traz.
Amiga imediata, sorridente e pronta para tudo.
Li seu livro afoita , curiosidade instigada pelas amostras do blog e marquei várias páginas.
Ana tem esta inquietação que nos pertence e que vira escrito, poesia, arte que partilhamos aliviados e de quebra produz no outro um sorriso cúmplice de quem vislumbrou um quadro detalhado e multicor, belo, emocionante, feito de letras, signos pretos em papel branco.
As ilustrações e soluções gráficas dão um toque a mais no trabalho da Ana.
Penso que em breve ela possa estar por aqui para celebrar o nascimento deste seu filho de papel.
Parabéns, Ana!

O blog de Eliane é o http://elianeratier.blogspot.com/
Amiga de letras, com uma empatia mútua instantânea, realmente só tenho a agradecer por este comentário em forma de poesia! obrigada!

domingo, 18 de novembro de 2012

MEMÓRIA, PALAVRA E CÂNTICOS


            Há aqueles que nunca olham para trás. Eu, ás vezes olho, para certificar-me que não há nenhum esqueleto me seguindo. Quando, por desventura, pressinto algo além de minha sombra em meu costado, trato de cantarolar Glórias ao presente e exéquias ao passado, para que este se aperceba que foi morto e enterrado.
            Já olhei muito para trás, deste mal não há homem ou mulher que não padeça, não é mesmo, seu doutor? Olhei muito para trás, sofri e ressenti cada dor que eu achava perdida, reabri cada mal sangrada ferida, chorei como se num fosse cabra de aguentar ferro e fogo. Claro, não na frente de muitos, mas no duro de minha cama. E eu pedia ao senhor Deus que me levasse essas mágoas, águas ruins que empesteavam meu sono, mas acho que semente que eu plantei, eu tinha que desenraizar, doutor.
            Sim, amores de muitas primaveras, que plantei sementes e não se deram o trabalho de desabrochar; palavras ruins que ouvi e meus ouvidos não se dignavam a esquecer; e os olhos, doutor, que teimavam em ter outras imagens na retina além daquelas que comum e diariamente viam? Quase enlouqueci, por excesso de memórias dentro de mim. Também a pele, doutor, a pele, o nariz, teimavam em me trazer de volta toques e cheiros de peles que toquei e senti, como se fossem coisas vivas e independentes... parecia uma revolução de meu corpo contra meu coração. Eu queria verter fora as lembranças, e o corpo dizia não.
            Me acostumei então com aquela sensação de não pertencer a tempo nenhum. Pé no passado, corpo no presente, e desse jeito, sem esperança de futuro... meus fantasmas, meus esqueletos de memória me seguravam os pés, alisavam o corpo, embalavam meu sono, nem apelando a todos os santos conseguia me livrar deles... e então, descobri o cantar. Aprendi a cantar, e a sensação foi se indo embora. A música pôs meu sentimento no presente, e lavou meus olhos da terra velha, das imagens antigas que teimavam em permanecer. Minha pele arrepiou-se com os sons que vibravam nela, meus ouvidos se encheram de outras palavras, mais doces, e mais amigas. E a palavra, doutor, a Palavra me libertou. Porque através da harmonia da música, e da palavra que acompanhava os sons, me libertei de fantasmas, de esqueletos, do que não mais me pertencia e me habitava. Por isso, doutor, réquiem e glória andam juntos em meu repertório... para livrar-me do mal, amém.

domingo, 4 de novembro de 2012

FINADOS


                 ...e do nosso afeto, do nosso respeito, o que restou, diga-me? Nos guardávamos em memórias, em frases, em fotos amareladas pelo tempo, em gestos de carinho e de cuidado. Agora, eu falo com o vento, escrevo para um ausente, me sinto ferida, sangrada, cortada, esvaída de minha força. O que você fez comigo?
                O que fizemos conosco? Quando na nossa forma vaga de amarmos sem nos delatarmos, perdemos o fio da meada, o tempo certo, o bonde, o gesto, o beijo e o afago, na esperança de sermos melhores para alguém, e agradarmos a todo mundo? O que fizemos conosco?
                E de nossa juventude, rostos brilhando, felicidade espontânea com a presença mútua, aquela que achávamos esconder dos outros, mas escondíamos só de nós mesmos, presos aos nossos medos enormes de nos machucarmos, ou talvez sermos por demais felizes num mundo em que o bonito é sofrer? O que fizemos da juventude?
                Agora, que temos a maturidade, e a paixão não mais nos cega, sabemos que devemos viver cada dia, mas não temos mais este tempo. O que fizemos conosco, me diga? O que tua palavra mansa, teu peito afogado, teus olhos suplicantes queriam me dizer de tão importante, agora que já sabemos da efemeridade do tempo? O que é importante me falar agora, saber agora, que vá nos resgatar a juventude, diálogos, cartas amareladas, olhos brilhando, e o que não fomos quando tínhamos que ser?
                Não! Não fales nada. Porás todas as nossas lembranças a perder. Não resgates o amor que sentimos, não fales da falta que te fiz, da alegria que poderíamos compartilhar. Pois falar é fácil, mas vamos continuar em nossos lugares, estanques, com nossos mesmos medos, cheios de dedos, com medo da condenação divina pelo nosso amar. E se eu falar, vais fugir, eu sei que vais. Teu silêncio sempre foi medo, teu medo foi sempre inação, e não sei nem porque te amei, se te conhecia o âmago, te conhecia o avesso, e sabia que eras imperfeito.
                Prefiro, agora, flertar com teu silêncio, com a memória de teu riso, de teu toque sorrateiro, prefiro. Não, não estou mentindo, é verdade! Dói menos poder ainda sentir o calor da tua mão em sonhos, do que a frieza de teus gestos, hoje. Curioso que tu és! Queres ter certeza do que perdeste? E com a certeza do que é morto, o que farás? Construirás um cemitério de cartas, gestos e sorrisos, nossa juventude perdida? Melhor ! Encerremos nossa história nesta caixa, e a enterremos, para que possamos, ainda que no fim de nossas vidas, caminharmos livres. Afinal, hoje é dia de honrarmos nossos mortos. E nossas mortes. 

sábado, 3 de novembro de 2012

ÁGUAS QUE PASSAM...


Há águas que passam, e não movem mais moinhos. Há outras águas, porém, que ficam correndo junto com nosso sangue, e estas movem moinhos, vidas e sonhos. Dessas segundas águas, todas as pessoas do mundo sabem, ainda que não admitam. São lembranças, antigas esperanças, sussurros de fantasmas, que nos impulsionam, nos fazem querer viver, para tentarmos repetir a façanha de sermos plenamente felizes.
Há águas que passam e não movem moinhos. São pequenas histórias, importantes em si mesmas, mas que não extrapolam os limites de espaço tempo em que ocorrem. São no momento que devem ser, desaparecem quando cessa sua razão de ser.
Das outras águas, porém, impregnadas em nosso sangue, em nossos ossos, pele e lembranças, tatuagem feita a força, destas águas ninguém pode dizer: “não beberei”. Bebo eu, bebe tu, ele. Nós, vós e eles também. São histórias que atravessam o tempo e o espaço; são resposta que damos ao vento, meneando a cabeça, respondendo a esse ou aquele que já não mais está, mas continua nos habitando.
Ah, doce natureza humana, e suas águas... desaguamos por essas águas que nos bolem, pela passagem que não se repete, mas que repetimos no cinema da memória. Nos fisga, assim, torce o peito, o cuore, nos dá um fastio... e não queremos perder esta sensação, porque ela nos dá a certeza que viver é bom, viver é mais do que o diário, comer, dormir, levantar, trabalhar.
Viver é saber que estas águas que estão misturadas com nosso sangue são nossa força motriz. E as águas que passam, que movam moinhos, pouco nos importa. Que as outras águas, do rio da saudade, nos levem de volta, a velhos moinhos...

Blog Palavra Prima, é para lá que eu vou

Quem chega aqui deve perceber que as postagens estão cada vez mais escassas. O motivo real é a criação, há mais de dois anos, de outro blog,...