Tráfego
tardio de experiências; neurônios cansados de levar e trazer informações,
emoções, sensações imediatas. Corpo perdido numa velha cama, pedindo coberta,
cuidado, respeito. Os olhos, ainda vivazes, seguem a acompanhante de um lado a
outro. Tem sede; tenta falar, mas as palavras simplesmente não saem; um
grunhido, balbucios, e nem assim consegue chamar a atenção da mulher que
deveria cuidar dela.
Paralisada,
não consegue tirar de seu corpo nenhum movimento; desespero. As escaras lhe
doem, mas não tem como falar; a comida já lhe chega por um tubo no estômago, a
boca ressecada pede um algodão úmido. Mas a indiferença grassa junto a ela.
Paga maldita, após deixar o que tinha para os filhos. Um quarto mal ventilado e
mal cheiroso, rescendendo aos seus próprios dejetos, que não consegue mais
segurar dentro de si.
Sua mente vaga por um outro tempo, outro
lugar. A acompanhante recorda-se de sua função, deixa a revista de fofocas de
lado, e a vira para trocar sua fralda, falando impropérios, convicta que ela
nada compreende. Sua vingança é expulsar o último resto de seus dejetos na mão
daquela mulher grosseira. Agora sente-se bem de não conseguir rir. Vingar-se da
imbecil, sem que ela se dê conta. Pode xingar, meu bem. Há alguma coisa que
ainda posso controlar.
Durante
a manipulação sem cuidados de seu corpo, ela foge para suas lembranças.
Criança, ainda, sua mãe lhe dando banho e esfregando suas costas, lavando seus
cabelos com chá de camomila, para que clareassem... agora não precisa mais,
mãe, meus cabelos já estão brancos... suas lembranças saltam, para seu primeiro
namorado, que tornou-se noivo, e depois esposo; conveniência da família.
Insosso, sempre chegando em horários escusos, com cheiro de outras mulheres. Os
filhos chegando, até que ele não a procurou mais. Mais um salto, e outros
braços a envolviam, único tempo de paz, nos braços do amante. Escândalo
particular, o marido puxando aqueles cabelos que sua mãe lavara, arrancando um
chumaço, lhe enfiando a mão na cara. Vergonha, vergonha, vergonha.
Só
ela soube. Mais ninguém. Os filhos desconfiavam, o último era mesmo um pouco
diferente dos demais, mas como provar? Ninguém nunca tocou no assunto. O marido
morreu. Ela velhíssima, os filhos já afastados, ela sozinha, um derrame após a
discussão sobre a herança. O derrame lhe levou tudo: movimentos, boa vida, a
fala, mas a deixara enclausurada neste corpo, sendo cuidada como se não fosse
mais do que um saco de ossos. Pele e osso, era bem o que sobrara dela. Os
filhos não a visitavam com frequência. Será que sabiam de seu passado? Ela se
agita, a acompanhante lhe dá um sedativo, olha a fralda, esquece novamente de
lhe molhar a boca. Que sede...
É
virada para a parede; vê a tela branca da parede, e recorda-se dos filhos,
amamentando o primeiro, protegendo o último, filho de seu amor. Nem este vinha
lhe ver. Antes não tivesse parido nenhum desses ingratos... ah! Mas havia a
memória de suas tardes perdidas com seu amante. Vingança e prazer amalgamados
num só momento. Nunca soube se realmente o amara, ou se o prazer de saber-se
vingada era o ponto alto de todo aquele jogo. Nunca soube. Teria amado alguém?
Os filhos, talvez? Não, amava a si mesma, e só assim se salvara daquela vida.
Não suportava os netos, crianças arrogantes, tanto quanto os filhos o eram.
Gostava de alguém? Novamente se pergunta. Não sei!, a si mesma responde.
A
noite cai, a tela torna-se escura. Suas pálpebras fecham, o sedativo fez
efeito. Na cadeira ao lado da cama, a acompanhante ressona, sem perceber que
somente um saco de ossos é o que sobrou da mulher que cuidava.